Capítulo 15 da série 'histórias que eu ouço na clínica'. 4z3l10
As frases que Mayara Siqueira (nome fictício) usa para descrever a nova vida que vem tendo depois do crack, são cheias de desânimo e incertezas. Aos 24 anos, ela viu sua vida desmoronar e se transformar em absolutamente nada depois que a droga ou a estar presente.
Mayara é casada atualmente com Jonilson (nome fictício), e ambos são usuários de drogas pesadas. Enquanto Mayara está na clínica de reabilitação buscando por ajuda, Jonilson espera do lado de fora até que seja aceito em alguma outra, para assim, se livrar do vício e voltar a ter a vida de antes, ao lado da companheira.
“A gente tinha uma vida muito diferente. Tinha emprego, tinha uma casa, tinha móveis, tinha tudo.”
Apesar de querer reconquistar todos os bens que perdeu por vício em drogas, o que Mayara mais sente falta hoje é das filhas, de sete e dez anos de idade, frutos dos casamentos anteriores, que não deram certo.
O crack se instalou na casa de Mayara há dois anos. Nem ela mesma sabia que aquilo poderia acontecer, porque em um dia estava tudo bem e, de repente, não estava mais.
O “caminho da perdição” nas drogas foi apresentado através dos amigos de Mayara. Para ela e Jonilson era comum ter amigos assim, que faziam questão de levar a droga até eles, que antes não eram usuários e seguiam com uma vida pacata. Então, em uma das primeiras vezes em que os “amigos” ofereceram a droga a ela e ao namorado, prometeram que a sensação seria inesquecível.
E foi isso que aconteceu. A primeira vez que Mayara teve contato com drogas, novas portas para o vício foram chegando. Aquilo foi realmente inesquecível, tão inesquecível a ponto de ela precisar de internação e não conseguir parar de pensar na situação em nenhum momento se quer.
As filhas de Mayara, que vivem e são criadas com a avó materna, são pequenas e não entendem muito o que está se ando na vida dos pais, mas elas sabem que logo terão a mãe em casa mais uma vez.
“Dói muito no coração delas, elas são depressivas.”
Mayara foi praticamente criada pelos avós, porque os pais se separaram quando ela ainda mamava no peito. A jovem recebeu todos os ensinamentos da avó e Mayara se sente mal em falar dela, porque relembra das coisas horríveis que disse à idosa nos momentos de euforia quanto estava sob efeito dos entorpecentes.
“Quando eu sair daqui quero abraçar elas, pedir perdão por tudo o que eu fiz."
A história problemática de Mayara começou bem antes dos 20 anos. Quando era pequena, apenas uma criança ainda, costumava frequentar uma igreja evangélica com a avó. O sonho de Mayara sempre foi poder cantar na igreja e se apresentar com o grupo de coreografia criado pelos jovens.
Ela chegou a cantar quando era pequena, louvando a Deus junto de seus amigos e colegas. Era algo que a preenchia, que a cativava. Ela sabia que tinha dom para tal coisa, mas o sonho se desfez aos poucos, sem que ela percebesse. Sem que pudesse fazer algo a respeito. E o pastor foi o culpado.
“O pastor da igreja que eu ia era um abusador.”
Quando criança, Mayara era uma pessoa ingênua e frágil, e nunca percebeu algo de errado da parte dele. Foi uma menina tranquila e feliz até chegar à adolescência e se tornar uma “mocinha”.
Quando as mudanças corporais começaram a surgir, Mayara percebeu que o pastor também ou a mudar junto com ela.
As conversas que ele ava eram estranhas e a menina não entendia o que estava acontecendo. Afinal, ele já era um homem com mais do dobro da idade dela, um senhor com mais de 50 anos, casado e com filhos.
Mal sabia ela que aquelas gentilezas todas que ele demonstrava, serviriam para tentar persuadi-la a cometer atos vergonhosos.
Uma das primeiras vezes que ela notou que alguma coisa estava errada, foi em uma visita do pastor à família dela. Em um dos momentos em que foram deixados sozinhos, ele ou a assediá-la de uma maneira muito explicita, pedindo para manter relações sexuais com ela em troca de um CD de músicas gospel e a gravação de uma música profissional só dela.
Mayara não respondeu à proposta do homem robusto e apenas virou às costas e o deixou falando sozinho.
Outro problema que Mayara ou a ter dali em diante, foi ter que ver a cara do pastor todos os dias enquanto se deslocava de casa para a escola, e vice-versa. O homem era motorista da van que a levava para os estudos.
Durante as paradas no trajéto, o pastor aproveitava para convidá-la a seguir com ele até uma área de mata na cidade, onde, em troca de dinheiro, faria qualquer coisa que quisesse com ela. Mesmo a induzindo a fazer coisas horríveis, o homem agia naturalmente, com um sorriso esbanjado no rosto, como se estivesse jogando conversa fora. Mas na verdade, não queria assustar a menina. Ele ia tentando aos poucos uma aproximação amigável para, então, dar o bote.
“Ele me pedia sempre para sentar no banco da frente, me queria sempre por perto.”
Mayara tentou se abrir para a avó sobre o que estava acontecendo, mas a senhora não deu ouvidos à neta. Achava que ela só queria chamar a atenção, porque, afinal, ela estava falando de um pastor, um homem de bem.
“Ele tentou colocar as mãos em mim, mas eu nunca fiz nada. Eu tinha medo dele.”
Inconformada que a avó havia virado às costas para ela, Mayara procurou pelo avô e contou tudo o que pensava sobre aquele homem. Perturbado com a situação, o avô esperou que o pastor fosse até a casa para ear, como sempre fazia, e defendeu a neta, discutindo com o homem e causando o maior alvoroço.
“'Você tá louca menina? Não precisava ter contado pro teu avô. Era só uma brincadeirinha'.”
Depois do episódio na casa dela, onde o avô colocou o homem para correr, as coisas só desandaram.
Nos dias em que precisava frequentar a igreja ao lado dos avós, Mayara era ignorada pelo pastor e até mesmo pela esposa dele. Antes, ela costumava cantar no altar, louvar a Deus e abrir o coração apresentando coreografias que sempre fazia na companhia de outras meninas, mas depois, Mayara não teve mais voz.
“Eles nunca mais me deram oportunidade.”
A esposa do pastor ignorava os pedidos de Mayara e se negava deixá-la se apresentar. Em uma das comemorações de Dia das Mães na igreja, todos as crianças receberam uma rosa da esposa do pastor para entregarem às suas mães, e Mayara ficou sem.
“Dói né? Minha avó chegou chorar.”
Depois de muitos episódios parecidos, de ter sido deixada para trás, excluída pelas pessoas que mais esperava amor e compaixão, Mayara saiu da igreja, com 15 anos, conheceu o primeiro marido e engravidou. O casamento não deu certo por motivos dos quais ela não falou sobre, mas os mesmos motivos fizeram com que ela se separasse do segundo esposo, pai da filha mais nova dela.
Com o tempo ando, Mayara encontrou o terceiro e atual marido. Ele também frequentava a igreja, mas deixou o templo religioso pelos mesmos motivos que Mayara. Ambos caíram nas drogas juntos, aram a brigar quase todo o tempo e, quando já não viam mais saída, resolveram buscar por ajuda.
Hoje o que ela quer é recuperar a boa vida que tinha, recuperar o emprego e, além de tudo, quer recuperar a saúde que tanto faz falta.
Iniciando praticamente do zero, fora da clínica Mayara vai buscar melhorar, e também vai tomar uma decisão bastante importante com relação ao atual marido, porque as drogas também acabaram com parte do casamento que ela tinha.
“Eu não quero mais sofrer na minha vida. O que eu quero é o melhor pra mim e o melhor para as minhas filhas.”
>> A história que você acabou de ler faz parte de um projeto que venho desenvolvendo na Clínica de Reabilitação de Ponte Serrada há mais de três meses, e pertence a um dos pacientes da unidade.
Kiane Berté tem 27 anos e trabalha como jornalista e fotógrafa. Nas horas vagas escreve suas histórias de romance curiosas e sonha junto delas com um mundo mais encantado e cheio de amor. Sonhadora, ela vê através das páginas de um bom livro a oportunidade de viajar para onde quiser sem sair do lugar